Mesmo com um rico mix de fontes de energia, temos um setor com custos altos e desperdícios notáveis — e a crise energética que estamos na iminência de viver corrobora esta afirmação. Entenda porque isso acontece e como a tecnologia pode ser essencial para resolver problemas persistentes e melhorar a distribuição, transmissão e gestão de energia no país

Brasil, o país com a segunda maior capacidade hidrelétrica do mundo (o primeiro é a China), e lar da maior indústria de biomassa do planeta. Além disso, é capaz de prover grandes quantidades de energia oriundas de outras fontes renováveis, como a eólica e a solar. Apesar disso, a energia é cara, muito cara – 65% mais cara que nos EUA, por exemplo. 

Além disso, temos um desperdício muito elevado – cerca de 18% da energia gerada, durante os processos de transmissão e distribuição, se perde, enquanto na Europa e EUA, esse índice é de 8%. Ou seja: temos abundância, não fazemos boa gestão e ainda desperdiçamos. Como isso acontece? E tem como resolver?

Responder à primeira pergunta exige um contexto mais amplo. As perdas em transmissão e distribuição (T&D) podem ser explicadas principalmente por duas classes de fatores: 

1)Perdas técnicas: 

A resistência ao longo das linhas de transmissão e distribuição (conhecida como efeito Joule) transforma parte da eletricidade em calor. Logo, o tamanho da perda está diretamente ligado às distâncias e à qualidade dos sistemas (linhas, subestações, transformadores etc). As transformações de voltagem (de baixa para alta, e vice-versa) também geram perdas, assim como a transformação entre corrente direta (DC) e corrente alternada (AC). Existem, ainda, as perdas oriundas de quedas nos sistemas de T&D;

2)Perdas não-técnicas: 

São prevalentes em países com altas taxas de perdas totais, como o Brasil. São as perdas que acontecem por causa de ligações clandestinas, erros de medição, ou ausência de equipamentos de medição apropriados. No Brasil, as perdas não-técnicas representavam cerca de 46% das perdas totais em 2018, segundo levantamentos da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica). 

“Além destes dois tipos de perdas, é importante mencionar as perdas por ineficiência e desatualização de equipamentos No Brasil, temos motores elétricos que consomem 60% mais energia que em outros países industrializados. Este é um desperdício bastante elevado, pois grande parte da energia gerada é consumida nas diversas áreas industriais e o desperdício pode facilmente ser evitado com excelentes ganhos de produtividade e financeiros para a própria indústria”, aponta Antonio Carlos Felício Lambertini, coordenador da divisão técnica de geração e transmissão do Instituto de Engenharia.

“Embora a tecnologia sozinha não resolva todo o problema – já que há questões ligadas às políticas públicas – é certo que novas soluções podem ser empregadas para mitigar as perdas. A adoção de smart-grids talvez seja a mais urgente”, Mauricio Salla, da consultoria Crowe Macro.

“É importante salientar que as duas taxas de perdas variaram muito pouco ao longo da maior parte da última década – na verdade, pode-se dizer que permaneceram constantes. Porém, houve um aumento expressivo desde 2018 [cerca de 4 pontos percentuais], muito provavelmente devido a diminuição da renda disponível”, explica Maurício Salla, sócio e líder da área de Energia e Materiais da consultoria Crowe Macro. Dado esse cenário, Salla infere que, se pudéssemos eliminar as perdas não-técnicas, o Brasil apresentaria uma taxa total inferior à média mundial, que era de 8,3% em 2019.

“As taxas de perdas não-técnicas dependem, em quase sua totalidade, da gestão das grandes concessionárias e de aspectos socioeconômicos de cada área de concessão, logo podemos afirmar que, pelo menos no nível da distribuição, parte do problema reside na inadequação dos sistemas de transformação e medição e, principalmente, na falta de informações mais precisas a respeito dos níveis de renda e perfis de consumo de cada área de concessão”, diz o executivo. Ou seja: existe uma demanda por soluções que envolvam uma coleta inteligente de dados e/ou possam fazer medições mais confiáveis.

Já os problemas de transmissão têm raiz nas características do próprio sistema. A principal delas é que a geração de eletricidade ocorre, em grande parte, longe dos centros de consumo. Se formos comparar novamente com os EUA – um país também de dimensões continentais – vemos que lá as fontes geradoras estão cada vez mais próximas dos centros de consumo e os sistemas de medição evoluíram rapidamente para acomodar os novos marcos regulatórios e exigências econômicas. 

“Além disso, a adoção de fontes renováveis locais diminui a dependência de grandes linhas de transmissão. Há um incentivo claro para políticas públicas voltadas à transição energética. Apesar de o Brasil também ter aumentado a participação de fontes renováveis, ainda não observamos o mesmo efeito, e a razão é que ainda dependemos muito dos recursos hídricos para a geração de energia”, explica Mauricio Salla.

Combinando recursos

Onde entra a tecnologia nessa história toda? Em muitos lugares. Antônio Lambertini identifica algumas soluções em que a presença dela traz resultados notáveis. Para o especialista, as maiores possibilidades de atuação estão: 

  1. no direcionamento de energia das redes de distribuição para os locais e horários de maior consumo;
  2. em instalações de Geração Distribuída (GD) associadas ao armazenamento de energia.
  3. detecção de desperdícios energéticos em áreas industriais;
  4. adequação ou substituição de motores ultrapassados e de baixa eficiência.

“O que impede o Brasil de adotar essas soluções em larga escala é uma combinação de fatores”, explica Lambertini. “Temos as incertezas econômicas, o desconhecimento dos avanços tecnológicos por parte dos dirigentes de empresas, e a falta de divulgação das vantagens não só técnicas, mas principalmente, econômicas, trazidas pelo avanço tecnológico”, diz.

“Embora a tecnologia sozinha não resolva todo o problema – já que há questões ligadas às políticas públicas – é certo que novas soluções podem ser empregadas para mitigar as perdas. A adoção de smart-grids talvez seja a mais urgente”, avalia o Mauricio Salla. 

Essa tecnologia engloba uma nova arquitetura de serviços e a instalação de equipamentos de medição mais modernos e eficientes, além de permitir que T&D sejam realizados de forma descentralizada. Elas são, por assim dizer, “redes inteligentes”, com elevado grau de automação, capazes de oferecer um controle mais eficaz do fluxo de energia.  Para isso, ela se vale de medidores eletrônicos inteligentes, mais modernos que os medidores convencionais, com funções como o envio de eventos e alarmes, além da possibilidade de medição remota.

Para o fundador da Flora Energia, Roberto Cavalieri, a geração distribuída — que combina o uso de energia de fontes renováveis com o de fontes tradicionais — traz ganhos, mas sua adoção em larga escala é algo de médio a longo prazo

A expansão das fontes renováveis e o crescimento do mercado livre de energia são os grandes vetores de crescimento dos smart-grids no Brasil. Segundo a Abradee (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica), essas redes devem atender mais de 74 milhões de usuários no Brasil até 2030.

“Os smart-grids permitem que quedas no fornecimento sejam identificadas instantaneamente, o que mitiga custos e previne fraudes, a principal causa de perdas. Além disso, permitem que o perfil de consumo seja medido de forma mais granular, o que torna o planejamento de carga mais efetivo. Para o consumidor, os medidores inteligentes permitem o acompanhamento em tempo real do consumo e, no caso de consumidores que produzam energia elétrica (autoprodutores) ou excedente de energia elétrica (residências ou empresas com painéis solares), estes poderão armazenar ou vender seus excedentes para o sistema”, explica Mauricio Salla.

Como cada concessionária atua em regiões distintas com características socioeconômicas diversas, seus métodos de gestão estão adaptados às suas realidades regionais. Isso abre janelas para a customização de soluções de eficiência energética – algo que muitas startups estão fazendo, principalmente no setor de fontes alternativas à energia elétrica e de geração distribuída. 

A Flora Energia é uma delas. Ela procura aumentar o acesso à energia renovável, oferecendo uma maneira de combinar o uso de energia elétrica da rede com energia de outras fontes renováveis, sem a necessidade de instalar painéis solares ou similares em casa. As fazendas de energia limpa associadas à empresa são conectadas à rede da distribuidora, criando um sistema de créditos que dá direito a descontos na fatura doméstica de energia para os usuários da plataforma da Flora.

“Nosso processo é simples, totalmente digital, e com transparência permanente da informação para os nossos clientes. Isso só é possível através de nossa plataforma, por isso, nossa infraestrutura e as soluções de TI são fundamentais para nosso modelo de negócio”, explica Roberto Cavalieri, sócio-fundador da empresa. Esse modelo, chamado de geração distribuída, pode tornar a geração mais segura e eficaz, mas, como reconhece o empresário, sua adoção em larga escala demanda investimento e desenvolvimento de novas usinas de energia limpa. “É algo para médio a longo prazo”, admite.

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