Cinemas, teatros, estádios e feiras: em várias cidades do Brasil, chegou a hora de retomar os eventos presenciais. Mas a transformação experimentada nos últimos tempos não foi pequena e nada mais será (só físico) como antes

Um motorista liga o carro, engata a primeira marcha e entra dentro de uma obra de arte. Ou, para ser mais exato, de uma exposição artística. A experiência, chamada DriveThru.art, ocorreu em junho de 2020, no auge da primeira onda de covid-19, quando as vacinas ainda estavam em desenvolvimento e o mundo inteiro permanecia trancado em casa sem perspectivas de retomar o que se convencionou chamar de “normal”. 

O objetivo daquele evento, que ocorreu em São Paulo, foi ser uma alternativa de lazer segura e controlada. “A exposição partia do princípio da utilização do carro como uma célula de segurança contra a contaminação. Não havia qualquer contato físico entre os visitantes e a equipe do evento. O material de apoio, com guia em áudio, que explicava sobre as obras e seus criadores, era inteiramente digital, hospedado na nuvem e acessível por meio da leitura de um QR Code”, explica Maurício Soares, sócio-fundador da ARCA, espaço para realização de eventos na capital paulista que organizou a exposição. 

“Quando a gente fala de economia criativa, essa não é uma designação para os negócios da cultura, mas uma nova forma de enxergar os negócios no mundo, totalmente ligada à tecnologia. A TI faz parte da economia criativa. É o que permite escalar sem perder autoralidade”, Nayara Bernardes, do Sebrae.

A venda dos ingressos da DriveThru.art foi organizada de forma a controlar a quantidade de carros que percorriam a mostra e o áudio explicava e cadenciava a visitação. A criatividade deu frutos. “A exposição foi um enorme sucesso, tanto de público como na mídia, sendo notícia em veículos de mais de 30 países diferentes”, conta Soares. 

O DriveThru.art é um bom exemplo de evento nascido durante a pandemia e que misturou o mundo físico com ferramentas digitais. Uma convergência que tem nome: phygital. Essa mistura já era um caminho natural, mas foi acelerada por conta da covid-19. A pandemia mostrou que é possível. As empresas aprenderam com essa transformação digital, mesmo que de forma forçada, diz Nayara Bernardes, especialista em tecnologia e em economia criativa do Sebrae, órgão que também organizou eventos assim.

Um exemplo é o Check-in Minas, que forneceu uma experiência gastronômica para jornalistas e influenciadores. No auge da pandemia, eles foram convidados a cozinhar junto com o chef Flávio Trombino, do restaurante Xapuri, um dos mais tradicionais de Belo Horizonte. Para isso, ingredientes frescos foram enviados para a casa dos participantes horas antes da live. A partir daí, era só seguir a orientação do chef, numa live exclusiva, para aprender a fazer os pratos e, claro, depois degustar a gastronomia mineira. 

 

“Muitas empresas tiveram que, na marra, implementar aplicativos para a venda online, logística, clientes… Isso tudo foi um aprendizado enorme”, Paulo de Tarso Alvarenga, da Kiosk Brasil.

Apesar das grandes ideias, diversão é contato

De artistas que passaram a se apresentar em lives a escritórios inteiros que migraram para as telas, o mundo se digitalizou. Mas para os setores que viviam do contato humano, como o de eventos, os prejuízos do fim dos encontros foram grandes. “O impacto foi devastador. Tivemos que refazer todos os planos, reduzir custos, renegociar contratos e buscar alternativas para geração de receita”, lembra Maurício Soares.

Paulo de Tarso Alvarenga concorda. Ele é gerente geral da Kiosk Brasil, empresa especializada na venda de serviços de tecnologia da informação, automação comercial e que já atendeu a clientes do setor de eventos como a Cinépolis, a maior operadora de cinemas da América Latina, com mais de duas mil salas. “Teve uma mudança muito grande no dia a dia das empresas. E também uma adaptação bem grande, mesmo que o tempo vá passando e a gente se esquecendo, porque virou o novo normal”, reflete. 

Alvarenga faz uma previsão para a retomada dos eventos presenciais para o ano que vem, já pensando numa alteração de demanda por parte dos seus clientes: “A parte tecnológica é importante na questão do acesso aos eventos, que vão ter que ser contactless. Tudo que for contato, como a biometria, vai ser complicado”, aponta. Segundo ele, uma das grandes transformações digitais catalisadas pela pandemia veio no desenvolvimento de aplicativos. “Muitas empresas tiveram que, na marra, implementar aplicativos para a venda online, logística, clientes… Isso tudo foi um aprendizado enorme”, garante. 

Não bastasse o prejuízo inicial, o setor de eventos ainda conviveu com outro medo desafiador: o de saber que seria o último a retornar, só depois de bares e restaurantes e até do turismo, setores também muito afetados pelas restrições de circulação. “Somos seres sociáveis e o entretenimento é feito para isso. É o momento de sair, de ter qualidade de vida. Então, não é normal que as pessoas queiram usufruir da arte de forma remota”, reflete Nayara Bernardes. 

Mais de um ano e sete meses depois que tudo fechou, o Brasil avança na vacinação e no controle da pandemia. As cidades tentam retomar a vida “normal” e, aos poucos, o setor de eventos vai sendo reaberto — de shows a jogos de futebol, de feiras profissionais a apresentações de teatro. 

As possibilidades de relacionamento, gamificação e monetização das interações digitais tendem a se desenvolver e a se ampliar cada vez mais, complementando o presencial e trazendo maior resiliência para o mercado de eventos.

O touch e o toque juntos

Mas o que será dos eventos digitais agora que o mundo se prepara, até com natural ansiedade, para a volta dos encontros presenciais? Vejo a convergência do modelo phygital como algo não apenas bem-vindo, mas de certa forma inevitável. Os eventos presenciais proporcionam estímulos sensoriais que ainda são muito difíceis [ou quase impossíveis] de reproduzir em eventos digitais, mas estes contam com potencial de alcance e capilaridade que os eventos presenciais simplesmente não têm”, defende Soares. 

Nayara Bernardes concorda e pede para que empresários, artistas e espaços de eventos não percam os aprendizados trazidos pela pandemia. “Usar a tecnologia é uma forma de escalar o seu negócio, de ganhar mais e alcançar mais pessoas. Tudo isso tem que ser utilizado como forma de agregar valor e experiência”, diz a especialista, lembrando que os eventos presenciais ainda têm limitação de público — por medidas sanitárias, há bem menos lugares disponíveis em museus, teatros e estádios do que antes da pandemia. Por outro lado, após meses de isolamento, o interesse das pessoas por alternativas de lazer e socialização é grande. A solução para balancear a pouca oferta e o excesso de demanda pode estar no phygital. “A tecnologia pode escalar e driblar essa limitação de pessoas ao transmitir esses eventos”, diz ela. 

Maurício Soares também enxerga a transformação digital como uma forma de alavancar ganhos e atingir um público maior nesse retorno dos eventos presenciais. “Eu acredito que as possibilidades de relacionamento, gamificação e monetização das interações digitais tendem a se desenvolver e a se ampliar cada vez mais, complementando o presencial e trazendo maior resiliência para o mercado de eventos.”

Ou seja, mesmo num cenário pós-pandêmico, e sem restrições sanitárias, o phygital deve ter seu lugar. Até porque, sempre tem gente que, por um motivo ou outro, simplesmente não pode sair de casa. “Foi meu caso antes mesmo da pandemia, quando eu estava de licença maternidade. Eu buscava por alternativas de lazer sem sair de casa, mas não encontrava”, conta Nayara. “Quando a gente fala de economia criativa, essa não é uma designação para os negócios da cultura, mas uma nova forma de enxergar os negócios no mundo, totalmente ligada à tecnologia. A TI faz parte da economia criativa. É o que permite escalar sem perder autoralidade”, diz ela. 

Se o phygital é caminho sem volta, também traz demandas, seja uma por boa conexão ou mesmo por investimentos em tecnologia de ponta. “São desafios das mais diversas naturezas. Vão desde o mais trivial, com wi-fi lento ou uma cobertura de 4G/5G deficiente, até a capacidade de processamento para criar ambientes e interações convincentes e engajadores no metaverso [mundo virtual que tenta replicar a realidade através de dispositivos digitais]. Ou a barreira de entrada imposta pelo custo dos dispositivos mais avançados”, diz Soares. 

Uma coisa é certa: além de ter vindo para ficar, o phygital tem muito espaço para crescer. 

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