Como a integração de dados no setor de saúde podem aumentar a eficiência, diminuir custos, melhorar a qualidade de vida e até salvar vidas?

Ao viajar de férias para outra região do país, uma pessoa passa mal e procura atendimento de urgência num pronto-socorro. E, mesmo sem nunca ter pisado naquele hospital, ao informar seus dados, os profissionais de saúde têm acesso, em segundos, a todo o histórico médico do paciente: exames anteriores, remédios utilizados, comorbidades, procedimentos cirúrgicos, enfim, informações coletadas por diferentes médicos e hospitais pelos quais o paciente passou. 

Essa situação ilustra o que seria, na prática, a integração de dados na saúde, uma espécie de Open Health — para pegar carona no conceito de Open Bank, que está sendo implementado no setor financeiro. 

“Os atendimentos de pronto-socorro seriam bem mais rápidos e o médico teria uma visão mais precisa, sempre consultando o histórico clínico do paciente. Com isso, a tomada de decisão do profissional médico para terapias, tratamentos e até mesmo estratégias de prevenção poderiam ser mais assertivas”, diz Cristiano Teodoro Russo, biomédico, doutor em Ciências da Saúde, pesquisador de Tecnologia e Inovação e professor de medicina da PUC do Paraná. 

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“A saúde é um dos ambientes mais áridos para a absorção de tecnologia. Mas, com o consumidor no centro de tudo, ela também precisa mudar e mexer com conceitos centenários”, Cristiano Russo, biomédico e doutor em Ciências da Saúde.

Os desafios para que se chegue a um sistema de informações de saúde de abrangência nacional, mesmo com todo o avanço tecnológico que temos experimentado nos últimos anos, são grandes em vários aspectos, inclusive técnico. Contudo, fatores culturais, associados à fragilidade do “bem” a ser compartilhado e integrado, a saúde, é apontado por Russo como o principal obstáculo para que se chegue ao Open Health. 

“Fazer a integração dos dados de saúde é bem mais complexo do que no caso do modelo bancário, que, na verdade, já é conectado há muito tempo. O que o Open Bank faz, atendendo a um novo modelo de privacidade, é ter o aval do usuário para que os dados transitem de uma forma muito mais ampla entre as instituições financeiras. Só que tudo que envolve o indivíduo e a vida, como no caso da saúde, traz consigo também uma regulamentação bem mais complexa.”

A privacidade dos dados pessoais é uma das grandes preocupações em todo planeta. Se dados bancários podem ser utilizados para que instituições financeiras ofereçam produtos e serviços, no caso da saúde, há ainda mais variáveis a serem consideradas, algumas de natureza ética, que vão desde o preconceito associado a algumas doenças até questões financeiras. “Com os dados integrados, será que as seguradoras cobrarão mais para quem tem comorbidades?”, pergunta Russo, já ilustrando um ponto polêmico do Open Health.

O case da vacinação contra a Covid-19 e outros avanços

Um bom exemplo de integração de dados na saúde do Brasil vem da vacina para covid-19: basta baixar o aplicativo do SUS para ter acesso a informações como o local em que você foi vacinado, o profissional que fez a vacinação, a vacina utilizada e até o lote dela. O sistema, um avanço inegável em relação aos obsoletos cartões de vacinação de papel que frequentemente são perdidos pelo portador, foi o que permitiu que abusos fossem descobertos: os casos de pessoas que se vacinaram mais vezes do que o permitido, por exemplo. No futuro, o mesmo sistema pode ajudar a melhorar a cobertura vacinal da população para diversas doenças.

Mas, se a integração de dados funciona bem no caso da vacina, em outros setores falta unificação. “Cada hospital, clínica e unidade usa um sistema diferente, não há um padrão. Mesmo o prontuário eletrônico não tem um padrão. E não há nem um consenso do que seria um padrão, porque cada especialidade demanda um conjunto de informações diferentes. O prontuário eletrônico da cardiologia pode não ser o que se precisa na mastologia. Mas existe um conjunto básico de informações que talvez permita que o médico tenha uma visão geral do paciente sempre que ele circular”, defende Russo.

Apesar dos problemas, a Open Health avança no Brasil, mesmo que lentamente. Em 2014, o Hospital Sirío Libanês, em São Paulo, e o Unimed Recife III, na capital pernambucana, foram apontados pela Healthcare Information and Management Systems Society como os dois primeiros hospitais digitais do país. Mesmo antes disso, em 2012, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo já era o primeiro hospital do SUS a ser 100% digital, um reconhecimento dado pelo Conselho Federal de Medicina e pela Sociedade Brasileira de Informática em Saúde.

A tecnologia de saúde não resolve todos os problemas, mas a política pública de saúde, sim. A tecnologia é um meio, um instrumento para ajudar a promover saúde

Saúde pública e privada

Para Russo, não há grande diferença no avanço da integração de dados entre hospitais públicos e privados. “Nos grandes centros, o setor privado está na frente. Mas, na média, anda igual.” O especialista destaca que o setor de saúde é muito tradicionalista e, por isso, mais lento em adotar inovações. “A saúde é um dos ambientes mais áridos para a absorção de tecnologia. Só que, agora, o consumidor é o centro de tudo e a saúde também está passando por essa mudança, que mexe com conceitos centenários. À medida que essa nova forma de consumo atinge a saúde, ela é pressionada a mudar. Provavelmente o setor privado vai avançar mais rápido, justamente por se guiar mais pelas demandas e exigências dos consumidores; é uma questão de sobrevivência.

No sentido de ter um negócio cujo sucesso está mais umbilicalmente atrelado à satisfação do cliente, os hospitais privados se aproximam mais das fintechs, enquanto os hospitais públicos estão mais para os bancos tradicionais — se quisermos traçar um paralelo entre os setores.

Healthetechs

Nos últimos anos, o Brasil viu surgir inúmeras startups, de planos de saúde a empresas de TI especializadas em oferecer soluções e tecnologia para hospitais. Um exemplo é a Amarq Consultoria, que, entre suas atividades, vale-se da integração de dados para auxiliar empresas na escolha de planos de saúde. “Nosso desafio é encontrar um plano de saúde empresarial capaz de proporcionar serviço de qualidade aos segurados a um preço acessível. Quando os profissionais estão seguros do serviço de saúde que acessam, a qualidade de vida deles melhora e o RH da empresa lida com menos afastamento e absenteísmo”, diz Mariana Marques, CEO da Amarq.

Um aspecto importante desse negócio é entender que, anualmente, os valores despendidos pela empresa ao plano de saúde são renovados. É aí que entra uma parte consistente do trabalho de análise de dados da consultoria, que zela para que essas renovações continuem respeitando o equilíbrio entre qualidade de serviço, preço e satisfação do segurado.

Bruno Amorim, que coordena o time de gestão de saúde da consultoria, explica que, ao analisar o histórico de exames, consultas, benefícios em compra de remédios em farmácias e atestados de todos os profissionais, é possível criar um modelo preditivo e, se estiver ao alcance da empresa (e muitas vezes está), desenvolver ações preventivas. 

“Se percebo, por exemplo, que há uma alta presença de internações ortopédicas associadas a determinada atividade laboral na empresa, posso investigar a causa e descobrir meios de minimizar e prevenir o problema. Essa conexão de informações permite que eu identifique beneficiários que ainda não chegaram ao evento final, evitando, assim, cirurgias e internações. Aí é que está o grande ganho proporcionado pela tecnologia a todos — empresa, plano de saúde e beneficiário —, pois permite a cobrança de valores justos, a oferta de uma assistência médica de qualidade e profissionais mais saudáveis e assíduos, explica Amorim. 

Como é a integração de dados da saúde em outros países? 

Se a integração de dados da saúde ainda tem um longo caminho no Brasil, em outros países já é algo mais consolidado. Russo destaca os casos do Chile, onde a integração permite que médicos consigam o histórico de saúde de pacientes que entram no sistema, e da Holanda, que tem até um programa de prevenção de câncer de colo de útero que usa a tecnologia. “A paciente tem que passar pelo menos uma vez no médico. Se ela não for, o médico recebe um aviso e a paciente recebe outro”, relata. 

Ao citar o exemplo da Holanda, Russo lembra que a integração de dados, sem planejamento, pouco agrega. “A tecnologia de saúde não resolve todos os problemas, mas a política pública de saúde, sim. A tecnologia é um meio, um instrumento para ajudar a promover saúde”, diz ele.

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