Assim como o trabalho, a educação tornou-se dependente das ferramentas digitais para continuar ativa durante a pandemia. Como isso afetará nossa forma de aprender e ensinar no futuro?

Pela primeira vez na história moderna, os filhos estão nascendo com QI inferior ao dos seus pais. Os testes de QI começaram a ser aplicados em larga escala só a partir da segunda metade da década de 1950 e, a partir de então, a tendência era que as novas gerações superassem as antecessoras. Mas isso não é o que vem acontecendo mais recentemente.

Diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, o neurocientista Michel Desmurget compilou dados pesquisados em seu país natal e em outras nações para escrever o livro La fabrique du crétin digitale (“A fábrica de cretinos digitais”). No livro, Desmurget expõe o problema e explica que o uso de telas não pode ser isolado como o único causador dessa perda de capacidade intelectual das novas gerações, pois fatores ambientais como a poluição atmosférica, o uso de pesticidas e outros comportamentos sociais também podem estar envolvidos. Porém, o pesquisador afirma: o uso indiscriminado de recursos digitais prejudica nosso aprendizado, em qualquer idade.

“Cursos de tecnologia são facilmente embarcáveis nas plataformas digitais. A plataforma, porém, não faz milagre. É preciso ter mentoria e apoiadores de aprendizagem. Se houver isso e uma metodologia muito bem-feita, os resultados são excelentes”, Marcos Ricarte, da ABED.

Cabe, aqui, chamar a atenção para a palavra “indiscriminado”. Seria tolice ignorar a transformação digital e seus benefícios. Mas o fato é que o uso de recursos eletrônicos traz grandes impactos, sim. E não estamos falando apenas de crianças.

“As pessoas não estão mais desenvolvendo a inteligência porque tudo se pergunta pro Google”, resume Yuri Busin, psicólogo e doutor em neurociência do comportamento, diretor do Centro de Atenção à Saúde Mental – Equilíbrio (CASME). “Temos uma dificuldade muito grande de resolver problemas, porque os mecanismos de busca não os solucionam, apenas informam. Por isso, vivemos uma era de muita superficialidade. É a era das manchetes, onde todo mundo tem opinião, mas ninguém sabe defender profundamente aquele tema ou conhece a realidade por trás dele”, completa.

“Para os alunos em idade de alfabetização, é muito difícil ter uma boa formação online, até porque a escola traz também a questão da socialização e de outros aspectos que fazem parte da vida escolar nessa fase”, psicólogo e doutor em neurociência do comportamento, Yuri Busin.

Só reunião, sem diversão…

Até onde essa perda de profundidade impacta a formação de quem ingressa no mercado de trabalho ou já faz parte dele? Em março de 2021, o Laboratório de Fatores Humanos da Microsoft conduziu um estudo sobre as atividades das ondas cerebrais. No relatório, publicado em abril, fica claro que grande parte do estresse e da fadiga mental se deve às reuniões online consecutivas sem descanso.É bastante provável que você, leitor, saiba na prática do que estamos falando. Agora, pense: se isso estressa e prejudica o trabalho, por que não prejudicaria a aprendizagem?

As principais conclusões do estudo da Microsoft foram:

  1.   Mais de duas horas consecutivas em frente às telas provoca estresse. Isso porque a atividade média das ondas beta (relacionadas ao estresse) vai aumentando ao longo do tempo. A solução para enfrentar a fadiga é simples: fazer intervalos curtos, bem longe do celular ou do notebook (não, tablet não vale. Nem TV, caramba!).
  2.     Reuniões em sequência podem diminuir a capacidade de se concentrar e se engajar com o trabalho. Os encontros virtuais sem pausas afetam a capacidade de concentração e participação. E, se as “pausas” são em frente às telas, o cérebro não descansa. Não adianta ficar vendo vídeo de gatinhos achando que está descansando. Seu cérebro interpreta a atenção à tela como sinal de estresse.

3.   As transições entre reuniões consecutivas podem ser uma fonte alta de estresse. Sabe quando você termina a reunião com o fornecedor e já emenda uma com seu chefe? Esse período de transição entre as chamadas provoca um aumento dos níveis de estresse. Por isso, os descansos, mesmo curtos, são importantes para que a transição de uma reunião para outra seja menos estressante.

Ainda estamos no olho do furacão e não conseguimos ver o que está fora dele. Mas creio que o ser humano, mais uma vez, viverá seu processo natural de adaptação. Só não estamos próximos disso ainda

Como será  daqui para frente

Uma questão importante que os profissionais que já trabalhavam com EAD (Ensino a Distância) fazem questão de ressaltar é o caráter emergencial das medidas que foram tomadas uma vez que a pandemia se instalou.“O que estamos presenciando hoje é a adoção de um modelo paliativo. Não é a educação a distância como tem que ser, embora use as mesmas ferramentas tecnológicas. Na maioria dos casos, o formato atual não faz mais que usar uma ferramenta de teleconferência. Faltam as práticas pedagógicas e o planejamento necessário ao formato”, diz Marcos Ricarte, conselheiro na Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED).

Ricarte reconhece que compatibilizar uma rotina de trabalho que já é quase 100%. online com uma aprendizagem igualmente digital é uma tarefa bastante difícil. “Ao mesmo tempo que criou facilidades, a tecnologia também trouxe uma série de exigências. Da maneira como as coisas são hoje, estamos disponíveis o tempo todo, isso é muito demandante”, diz.

Porém, o conselheiro lembra que o tempo mínimo para absorção de novas tecnologias é, em média, três anos, então é natural que ainda sintamos essa dificuldade. “Veja o exemplo do tablet: é algo que já está há mais de dez anos no mercado, e tem várias aplicações que poderiam atender bem à educação, mas vemos que muitas escolas ainda ‘patinam’ no seu uso”, aponta. “Ainda estamos no olho do furacão e não conseguimos ver o que está fora dele. Mas creio que o ser humano, mais uma vez, viverá seu processo natural de adaptação. Só não estamos próximos disso ainda”, diz.

A falta de contato social e a perda de qualidade na educação ainda são o grande problema. Além disso, dentro da escola existem menos distrações. Ainda assim, há impactos positivos: as pessoas conseguem ter acesso a muitos profissionais gabaritados.

O psicólogo Yuri Busin faz um bom contraponto dos prós e contras da situação em que vivemos. “Para os alunos em idade de alfabetização, é muito difícil ter uma boa formação online, até porque a escola traz também a questão da socialização e de outros aspectos que fazem parte da vida escolar nessa fase. Já para os alunos mais velhos, como os universitários, depende de cada indivíduo. Os grandes problemas são, também, a falta de contato social, e o nível mais baixo da educação. A cobrança não é adequada. Além disso, dentro da escola existem menos distrações. Ainda assim, há impactos positivos: as pessoas conseguem ter acesso a muitos profissionais gabaritados, até de fora do país”. 

Esse é um dos aspectos que pode favorecer o ensino profissionalizante remoto: o acesso aos bons profissionais. Ricarte é ainda mais específico e afirma que “a área de tecnologia talvez seja a mais propícia e fértil para a educação à distância, no Brasil e no mundo”. Em sua avaliação, não há como suprir o notório déficit de profissionais no mercado, senão pela capilaridade da educação à distância. “Cursos de tecnologia são facilmente embarcáveis nas plataformas digitais. A plataforma, porém, não faz milagre. É preciso ter mentoria e apoiadores de aprendizagem. Se houver isso e uma metodologia muito bem-feita, os resultados são excelentes”, afirma o conselheiro. 

Ricarte acredita que, assim como no trabalho, a educação pós-pandemia caminha para um modelo híbrido.“Os ganhos do EAD superam o presencial quando você tem uma carga de trabalho muito grande, ou tem uma dificuldade significativa de estar presencialmente numa instituição de ensino.E não podemos esquecer que, antes da pandemia, a EAD já vinha crescendo em ritmo acelerado, especialmente no ensino superior”, afirma.


Na primeira infância

Qual é o limite do uso de telas para crianças? A Organização Mundial de Saúde analisou diversos estudos feitos ao redor do mundo para elaborar a seguinte recomendação:

FAIXA ETÁRIATEMPO EM TELAS
0 a 2 anosZero (restrição absoluta para telas)
2 a 7 anosAté 1 hora por dia
Acima de 7 anosAté duas horas por dia

Vale ressaltar que essa recomendação da OMS não é uma unanimidade e que muitos pedagogos e neurocientistas recomendam um uso ainda mais restrito. O próprio Michel Desmurget, por exemplo, fala em restringir totalmente o uso de tablets, celulares e videogames até que a criança complete seis anos.


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