As ferramentas tecnológicas de ensino se provaram bem mais do que um remendo educacional para compensar as restrições pandêmicas e não é exagero dizer que, em breve, tais recursos serão bem mais que diferenciais competitivos, serão ativos fundamentais para manter as instituições vivas no mercado

por Rafael Câmara

A aula é de matemática, mas os alunos fazem contas, tiram dúvidas e respondem ao professor de casa mesmo, na mesa da sala. Também as provas e até a interação com os colegas: nos últimos dois anos, o coronavírus digitalizou a escola. Não que a tecnologia seja novidade, afinal, plataformas de ensino à distância já existem há anos. Mas a crise sanitária acelerou a transformação digital e trouxe ferramentas que agora estão mudando profundamente a educação, mesmo com a volta das aulas presenciais. 

“Antes, a gente questionava quando a tecnologia estaria dentro da sala de aula. E ela não entrou da melhor forma possível e nem no melhor uso que poderia ter, mas entrou”, argumenta Rafael Sanchez, cofundador da Scaffold Education e que foi eleito um dos Top 100 visionários da educação pelo Global Forum for Education and Learning, nos Estados Unidos. “Só que antes a questão era se os professores iriam conseguir usar essa tecnologia e quando iam começar a usar. Agora, é como melhorar a utilização dela”, completa.

Os novos produtos de educação que só o universo digital pode proporcionar, Tecnologia
“Hoje, as escolas estão em busca da individualização do ensino, utilizando plataformas de BI alimentadas por LMSs para monitorar o desempenho de cada estudante e de cada professor”, Celso Hartmann, do Grupo Positivo

Não faltam exemplos nesse sentido, em especial nas escolas particulares. Um deles vem do Grupo Positivo, que reúne 17 unidades de ensino em sete cidades do sul do Brasil e que tem cerca de 16 mil alunos, desde a educação infantil até o ensino médio. Durante a pandemia, a rede investiu cerca de R$ 15 milhões em tecnologia e para treinar a equipe de educadores. Um investimento que fica de legado após a pandemia e que pode fazer a diferença para a empresa. 

“Termos como LMS (Learning Management System), síncrono e assíncrono não faziam parte do vocabulário de um professor até o início da pandemia. Plataformas adaptativas tinham uso pouco explorado, e monitorar o desempenho dos estudantes passava apenas pela análise das provas e suas respectivas notas. Hoje, as escolas estão em busca da individualização do ensino, utilizando plataformas de BI alimentadas por LMSs para monitorar o desempenho de cada estudante e de cada professor”, explica Celso Hartmann, diretor executivo dos colégios do Grupo Positivo.

Para ele, a transformação digital na educação é um caminho sem volta e que pode melhorar o processo pedagógico como um todo, mas, para isso, é preciso investir, seja em tecnologia, seja na formação dos educadores. Não é o simples EAD implantado em várias faculdades, mas um sistema mais completo, com muitas aulas síncronas, disponibilizadas em LMSs na qual os alunos precisam pesquisar os conteúdos postados pelos seus professores para depois discutirem, em sala de aula, o que estudaram. São flipped classrooms ocorrendo de fato, impulsionadas pela tecnologia e pela pandemia, diz Hartmann.

Os novos produtos de educação que só o universo digital pode proporcionar, Tecnologia
“Quanto material bacana existe hoje na internet e que pode ser compartilhado com os alunos? Material gratuito, inclusive. Tudo que aumenta a atenção do aluno faz com que o engajamento dele cresça, trazendo mais aprendizado”

Tecnologia: sinônimo de poder de escolha para o aluno

Rafael Sanchez destaca ainda que o desafio da digitalização entre escolas particulares e públicas é incomparável. As públicas, além de terem menos recursos, costumam ter alunos com menos acesso a computadores, smarthphones ou mesmo internet. “Vi escolas públicas fazendo o que melhor podiam naquele momento então, não digo isso em tom de crítica. Todo mundo tentou fazer o melhor durante a pandemia. Muitas escolas rodavam livros, materiais, os pais passavam na escola para pegar e depois entregar materiais aos filhos”, reflete Sanchez. 

Já nas instituições em que as aulas migraram totalmente para o digital durante o isolamento, como nas grandes redes particulares, é possível ver frutos e pontos positivos da experiência. A maior autonomia do aluno foi uma delas, mesmo que a mudança tenha sido brusca e com uma boa dose de tensão. A tecnologia entrar em sala de aula é algo que pode nos dar esperança de termos um ensino mais agradável pro aluno. A tecnologia é essencial para dar ao aluno a chance de escolher mais. Hoje os alunos escolhem muito pouco, tudo vem pronto e engessado. E quanto menos escolhas, menor a nossa motivação”, diz Rafael Sanchez. 

Outro ponto importante vem dos professores, que agora estão mais familiarizados com a tecnologia e com o mundo digital. Segundo Sanchez, isso também pode tornar a vivência em sala de aula mais criativa. “Quanto material bacana existe hoje na internet e que pode ser compartilhado com os alunos? Material gratuito, inclusive. Tudo que aumenta a atenção do aluno faz com que o engajamento dele cresça, trazendo mais aprendizado”, pondera. 

Com a tecnologia, partes da aula podem estar sempre disponíveis no ambiente digital, para que os estudantes tirem as dúvidas e revejam a explicação a qualquer momento. Isso aumenta o tempo disponível para transmitir o conteúdo, que não está mais limitado pela duração da aula, e permite que o assunto seja abordado de forma mais profunda

A chegada do ensino híbrido 

Como as aulas presenciais voltaram aos poucos e por muitos meses não eram obrigatórias para turmas inteiras, as escolas viram surgir o ensino híbrido. Um formato que rompe com o tradicional, em que o aluno chega na sala, procura sua carteira, abre o caderno e escuta o professor. “A nossa geração estudou em instituições de ensino em que o professor dava uma aula e nós assistíamos —  entãonosso papel era literalmente assistir a aula. Depois, a gente ia pra casa fazer exercícios. E, muitas vezes, era ali que surgia a dificuldade, mas já sem o professor por perto”. 

Com a tecnologia, partes da aula podem estar sempre disponíveis no ambiente digital, para que os estudantes tirem as dúvidas e revejam a explicação a qualquer momento. Isso aumenta o tempo disponível para transmitir o conteúdo, que não está mais limitado pela duração da aula, e permite que o assunto seja abordado de forma mais profunda. “Poderemos usar o tempo na escola para discussões, para questões mais complexas e para debater com colegas”, completa Sanchez. 

O modelo de aulas híbridas foi adotado pelo Grupo Positivo já neste ano letivo. Para isso, a escola manteve um profissional extra dentro de sala de aula, que passou a ser responsável por fazer a mediação entre o professor e o aluno que estava em casa, que assim também tinha suas dúvidas e dificuldades respondidas. 

O colégio ainda investiu em conteúdos digitais, de podcasts a webséries. O gestor garante que essas ferramentas não serão abandonadas após a pandemia. “A forma da gente se relacionar também mudou, então esses são bons exemplos e que deverão ser seguidos no futuro”, conclui Celso Hartmann.

Pelas oportunidades de um aprendizado mais profundo, interativo e protagonizado pelo aluno, que as ferramentas tecnológicas de ensino proporcionam, fica evidente que as instituições que dispuserem desses recursos levarão vantagens competitivas sobre as concorrentes que não fizerem o mesmo. Na verdade, não seria exagero dizer que, entre as instituições particulares, dispor deles, em breve, não será apenas um diferencial competitivo capaz de agregar valor ao serviço oferecido, mas uma necessidade para se manter vivo no mercado.

O ensino a distância foi desestigmatizado na pandemia e as empresas que adotarem esse caminho experimentaram diminuição de custos com mobiliário, transporte e estrutura, o que, combinado ao aumento do interesse do público por esse modelo de ensino, pode alavancar negócios. 

Além da educação básica 

O uso dessas ferramentas também pode ser fundamental para que o setor de cursos de idiomas, profissionalizantes, livres e outros possa recuperar as perdas causadas pela pandemia. Escolas menores, que não tinham capacidade de investir em tecnologia, viram uma migração de alunos para outras instituições. 

Sanchez relata que pequenos cursos de idiomas faliram e entregaram a carteira de alunos para os professores. “Vai levar um tempo, lógico, mas com a recuperação da economia, volta a necessidade”, diz ele. E a tecnologia acaba sendo um diferencial na hora de pais e alunos escolherem uma instituição. 

“Antes, o mercado associava, mesmo que em nível subconsciente, o ensino presencial sempre a algo com uma qualidade maior”, argumenta Fábio Muniz, CEO e Fundador da Awari, startup de tecnologia que oferece cursos remotos. Ele avalia que essa percepção mudou completamente após quase dois anos de ensino a distância, o que tende a aumentar a busca por estabelecimentos de ensino com foco digital ou híbrido, mesmo após a volta dos encontros presenciais. 

Outro ponto positivo para as empresas que adotarem esse caminho está na diminuição de custos com mobiliário, transporte e estrutura, o que, combinado a um  maior interesse por serviços de ensino a distância, pode alavancar negócios. 

“Houve não só uma otimização interna dos gastos para oferecer um produto, mas também uma ampliação do número de pessoas que podem comprar esse produto. E isso, no fim do dia, significa melhores resultados para a empresa”, completa Muniz. 

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